quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Inveja do que, cara pálida?

Célia Musilli tem jeito descontraído e leve de escrever. Vejam só esta crônica e o valor dado para o corpo feminino.

Segue uma crônica escrita por Célia Musilli
*O complexo de castração sob uma ótica leiga, desencanada e feminina*

Dia destes me encontrei com um divã e não foi numa sessão de análise. Encontrei-o por acaso na sala de uma amiga, cujo pai foi psicanalista e deixou de herança um divã azul e estiloso. Primeiro me reclinei sobre ele como uma personagem dos festins de Roma, a quem só faltava o cacho de uvas. E pensei que o divã deve ter cativado os romanos possivelmente por influência da Grécia, em territórios e épocas dedicados por excelência ao ócio, ao prazer e ao devaneio.

Bem mais tarde a peça de mobiliário ganharia outra função, quando Freud o elegeu o "encosto" ideal para múltiplas viagens ao inconsciente. Não era nada bobo o Dr. Freud. Porque era preciso deixar as pessoas à vontade em qualquer tentativa de descobrirem a si mesmas. E não seria num consultório frio, numa cadeira desconfortável e com olhos quase inquisidores pousados sobre nossas queixas que, enfim, nos descobriríamos. Então, o divã entrou no consultório e o de Freud era lindo, como se vê em fotos que mostram aquele móvel recoberto por mantas e almofadas, com aconchego de ninho, onde o inconsciente se abre sob a senha do conforto máximo, acolchoado e macio.

Naquele divã, saindo de Roma com a mente voltada para o início do século 20, fui tomada por certezas e dúvidas sobre as teorias de Freud. Não, não conheço bem suas teorias. Embora toda cultura contemporânea tenha absorvido conceitos que pontuam conversas corriqueiras com expressões como histeria, complexo de castração ou comportamento edipidiano. O velho Freud paira sobre nossas cabeças, ainda que não sejamos versados em Psicanálise e, assim, o divã me trouxe alguns insights como se antigas vozes voltassem aos meus ouvidos enquanto eu me deitava simplesmente para identificar naquele móvel as pegadas de outros inconscientes, nas trilhas do desejo e da repressão.

Comecei a pensar de onde Freud teria tirado a ideia de que as mulheres têm inveja do pênis, o que redundaria no inevitável complexo de castração. Ponderei que na época de Freud ser homem era muito melhor do que ser mulher. Porque ser mulher, naquele tempo, significava comportar-se como um ser reprimido, estressado, apartado de sua sexualidade, num período em que as fêmeas nem sequer abriam direito as pernas, a não ser na hora do parto. E o parto, embora cercado da idealização d o "padecimento do paraíso", decerto era um momento traumático para as mulheres que pouco conheciam seu próprio corpo, dando à luz, muitas vezes, quando ainda eram quase meninas.

Antigos paradigmas foram desmontados lentamente ao longo do século 20. A partir dos anos 60 fala-se da "libertação da mulher", expressão hoje tão desgastada quanto o seu sentido. Mas o fato é que a "superioridade masculina", a despeito de todas as revoluções, foi consagrada a partir do atributo do pênis – acatado pelo próprio Freud - como uma ideia que atravessou gerações, chegando ao nosso tempo ainda como uma sagração que confere força, poder e competitividade aos homens. Enquanto os meninos exibem seus pênis urinado em jatos de longo alcance, as meninas se agacham timidamente, disfarçando sua condição biológica. Meninos fazem xixi estimulados por um ato de liberdade e brincadeira. Meninas se espremem discretamente e ainda têm que aprender a secar-se com papel higiênico de trás para a frente, num ritual que exige sempre um esforço maior do que o prazer.

O que me ocorre, é que em tempos obscuros, Freud também não se abriu para uma inversão de seu raciocínio, considerando que os homens também poderiam sentir inveja do misterioso aparelho sexual feminino, internalizado como uma rosa que não se abria. A censura cultural não lhe permitiu esta ousadia ou mera inversão de valores, a partir de um outro olhar. Mas todo o potencial feminino estava lá, a ser descoberto em dobras e pétalas de fazer inveja, conduzindo a um labirinto que acaba no útero, uma das mais fantásticas criações da natureza, onde o mistério do desejo, da cópula e da fecundação toma forma. E tudo isto seria muito mais prazeroso se as mulheres não tivessem atravessado séculos de castração não pela falta de um pênis, mas pela falta de conhecimento do seu próprio corpo.

Que bem nos teria feito o Dr. Freud se em vez de nos acossar com a idéia de "invejar o pênis", tivesse nos alertado mais firmemente para a presença de um botãozinho mágico entre as nossas pernas que, uma vez acionado, pode nos levar ao verdadeiro paraíso sem pade cimentos. É inegável a contribuição de Freud para a descoberta e valorização da sexualidade feminina, mas falar em "inveja" nos deixou ainda em situação de tal inferioridade que atrasou descobertas libertárias que nos encheriam de orgulho e auto-estima.

De certo o doutor levou em conta o tamanho do pênis, possivelmente ereto, em detrimento do nosso diminuto clitóris sem nos alertar que aquele atributo mínimo era tão poderoso quanto a instrumento fálico do maior macho do mundo. Mas tamanho não é documento, Dr. Freud, nem certifica a inveja.

O homem é ostensivo por natureza e, da minha parte, admiro aquele enfeite que eles têm entre as pernas, algo assim como o colar de um guerreiro, um penduricalho vistoso que fica ainda belo quanto majestosamente ereto a nos prestar rever ências sempre bem vindas. Por outro lado, é prazeroso demais sermos donas de uma jóia tão internalizada, um broche em formato de pétalas que ainda conta com um botãozinho mágico, um chip oculto a detonar megabytes de prazer do qual ficamos apartadas durante séculos por desconhecimento ou vergonha da própria anatomia, num mundo tomado pelo conhecimento desenvolvido por homens que, embora francamente bem-intencionados, ainda nos tacharam de... invejosas.

E antes que confundam minha fala, vou logo alertando: Não sou feminista. Mas sinto um tal prazer e orgulho da feminilidade que não posso acatar o complexo de castração sem questionar firmemente depois de um século: "Afinal, inveja do que, cara pálida?"

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